Deus é inacessível. Isso significa Sua transcendência. Mas
se Ele quiser Se revelar, nada O impede de fazê-lo. De fato Ele o fez, Ele Se
revelou às Suas criaturas. Mas mesmo se Ele quisesse Se revelar e permanecer
transcendente (inacessível), Ele o faria. Ele Se revelaria, mas não iniciaria
nenhuma relação com os homens. Todavia, além de Se revelar, Deus também Se
relacionou com os homens. Isto é imanência. Veja bem, imanência não é Deus Se
revelar, mas Deus Se relacionar, ou Se condescender a essa relação. Ele poderia
Se revelar sem Se relacionar, mas para Se relacionar, Ele teria que Se revelar.
Na transcendência de Deus, Ele decretou todas as coisas como
elas hão de acontecer. Não é só que Ele sabe o que vai acontecer, mas Ele sabe
justamente porque Ele estabeleceu esses eventos. Todos eles. Não há um único
movimento de qualquer átomo que Deus não tenha estabelecido desde a eternidade
como ele haveria de se movimentar a cada milésimo de segundo enquanto esse
átomo existir. Mas ainda que Deus tenha estabelecido leis que fazem os eventos
ocorrerem, mesmo assim, Deus concorre com Suas leis, a fim de que elas cumpram
seu dever para com tais eventos. Nós costumamos dizer que algumas coisas ocorrem
“naturalmente”, como o crescimento da relva, por exemplo. Já a Bíblia diz que é
Deus quem a faz crescer (Sl 104.14; 147.7,8). Observe então que as coisas
acontecem “naturalmente”, obedecendo ao que Deus decretou eternamente.
Mas não é só com relação à natureza criada que Deus
estabeleceu os movimentos. Deus também estabeleceu cada evento em relação às
Suas criaturas morais. Quando chegamos a esse ponto, muitos cristãos, inclusive
calvinistas, começam a ceder terreno ao humanismo. Deus estabeleceu todos os
pensamentos que todas as criaturas iriam pensar, bem como suas palavras, ações
e quaisquer outros eventos externos que lhes ocorreria! Um exemplo disso é
Ciro, rei persa, que Deus levantou para certos fins e ele os cumpriu exatamente
como Deus o havia estabelecido antes de ele nascer (Is 44.28; 45.13). Ciro não
conhecia a Deus, exceto pelos relatos dos cativos de Judá. Mas Deus o conhecia.
Deus não conhecia Ciro somente por Sua onisciência, mas principalmente porque Ciro
foi um personagem inventado por Deus em Sua mente santa e cheia de planos para
um futuro relacionado a Judá. Deus não só inventou Ciro, como também decretou
tudo o que este rei faria, como de fato fez. O sábio diz: “Como ribeiros de
águas assim é o coração do rei na mão do Senhor; este, segundo o seu querer, o
inclina” (Pv 21.1). Claro que Deus não faz isso somente com reis, mas com
toda humanidade. Nenhum evento, seja pensamento, palavra, ação ou evento
externo, acontece a ninguém sem que Deus o tenha determinado desde a
eternidade! Isso Deus faz em Sua transcendência! Há vários exemplos disso na
Escritura, não só com relação ao rei Ciro. Deus fez com que o coração de Faraó
se endurecesse para não deixar ir o povo (Êx 4.21); Deus endureceu o coração
das nações inimigas de Israel, mesmo estas sabendo que não seriam capazes de
vencer o povo de Deus e, ao invés de se renderem a Israel, Deus endureceu o
coração delas para que guerreassem contra o povo de Deus e assim fossem
derrotadas (Js 11.20); Deus tapou o entendimento de Hofni e Fineias para não
ouvirem a voz de seu pai Eli, que os alertava contra seus pecados, porque o
Senhor os queria matar (1Sm 2.25); Deus determinou desde a eternidade as
pessoas que iriam matar Jesus (At 2.23; 4.27,28). Enfim, citei apenas exemplos
de ações más, as quais foram determinadas por Deus e executadas pelas pessoas
voluntariamente. Mas as ações boas também são determinadas por Deus e os homens
as fazem de forma espontânea. Artaxerxes concedeu a Esdras tudo que ele quis
para reconstrução do templo em Jerusalém, segundo a boa mão de Deus e não
segundo o livre-arbítrio do rei (Ed 7.6). Deus inclinou o coração de Lídia a
atender à pregação de Paulo e assim se convertesse (At 14.16). Os ouvintes
gentios ordenados à salvação vieram a crer na pregação de Paulo e Barnabé (At
13.48). Aqui estão provas bíblicas de que tudo o que acontece no ser humano,
sejam pensamentos, vontades ou ações, é determinado por Deus desde a eternidade
em Sua transcendência. O próprio Paulo, pregando aos atenienses, disse que nEle
(em Deus), nós vivemos, nos movemos e existimos At (17.28). Ninguém pode viver
fora de Deus. Ninguém pode se mover fora de Deus, existir fora de Deus, ou
sequer pensar fora de Deus! O cogito de Descartes não pode existir,
pensar, questionar, fora de Deus! Deus não pede opinião de ninguém nem espera
fatos ocorrerem, ou sequer Se utiliza de Sua onisciência para projetar uma
reação às ações de Suas criaturas. Antes, qualquer movimento de Suas criaturas
tem um start inicial, que é Deus e Seu decreto eterno.
Mas na imanência de Deus, isto é, em Sua relação com as
criaturas, Deus estabeleceu Suas leis, Sua vontade, por meio de Sua Palavra
revelada, através da qual Ele estabelece essa relação. Fosse esta Palavra em
forma audível, como no caso de muitos patriarcas do passado, ou em forma
escrita, como depois da lei de Moisés. Essa explicação responde à pergunta de
muitos: como as criaturas são responsáveis por atos que já foram determinados
para elas fazerem? A resposta está na imanência de Deus. Como em Sua
transcendência, ninguém pode acessá-lO, também não pode questionar
absolutamente nada do que Ele faz, visto que Ele é Deus e Sua soberania é
somente dEle, então na Sua imanência, Ele Se relaciona conosco por meio daquilo
que Ele nos revelou. No nosso relacionamento com Deus, devemos, por assim dizer,
“nos esquecer” de Sua transcendência (claro que isso é uma ironia, pois devemos
considerar sempre a transcendência de Deus para adorá-lO com profunda
reverência), assumir nossa pequenez diante dEle, agradecer por ter Ele sido
imanente para Se relacionar conosco e então, nos sujeitarmos aos moldes que Ele
estabeleceu para que esta relação acontecesse, que é por meio de Sua revelação.
A revelação geralmente é distinta em dois aspectos abrangentes: a revelação
geral (pela criação e pela consciência) e a revelação especial (pela Palavra
escrita e pela Palavra encarnada). Por meio da revelação geral, Deus não mostra
muita coisa sobre Si. Paulo diz que Ele revela alguns de Seus atributos, como
poder e divindade (Rm 1.19,20). Olhando para a criação, as pessoas sabem
naturalmente que há uma divindade poderosa. Mas o apóstolo diz que os homens “detêm
a verdade pela injustiça” (v. 18). Em outros termos, por causa de sua
impiedade e perversão, os homens suprimem, sufocam, a verdade de Deus que já
está gravada em seus corações. Então eles não Lhe dão glória, tornando-se
assim, indesculpáveis (vs. 20,21). Até mesmo em suas ações humanas, as pessoas
sabem discernir o certo do errado (Rm 2.14,15). Deus colocou isso em todas as
Suas criaturas, a fim de ninguém usar a desculpa de que não sabia nem conhecia.
Nessa forma de revelação, Deus não Se mostra de maneira salvadora, apenas de
maneira suficiente para tirar a desculpa do homem. Mesmo assim, é uma forma de
Se relacionar. Relembrando o questionamento, de por que o homem seria
responsável por coisas já determinadas, a resposta é que o homem é responsável
mediante o aspecto imanente de Deus. Ele é responsável perante o que lhe está
revelado. Deus Se revelou a todos os homens interiormente em suas consciências
e exteriormente em Sua criação. Nessa imanência é que o homem se torna
responsável diante daquilo que lhe foi revelado.
Porém, Deus não parou por aí. Ele Se revelou de forma
especial a muitas nações. Ele deu Sua lei para Israel e, posteriormente,
revelou-Se pessoalmente, por meio do Seu Filho quando Ele esteve na terra.
Depois que foi para o céu, Jesus capacitou a igreja com Seu Espírito a pregar
por todo o mundo, levando assim, a revelação especial de Deus para as nações
pagãs. Na lei, Ele confronta o homem, uma vez que Paulo diz que o homem, mesmo
sem lei, já sabia o que era certo e errado. Então a lei vem para desmascarar o
homem. Ela mostra que ele já sabia da vontade de Deus. Claro que ele não sabia
plenamente, visto que suas consciências foram manchadas pela Queda. Mas a lei
vem para clarear isto. Nela está revelada a vontade clara de Deus e nela a
denúncia é feita, porque o homem, além de não obedecer à sua consciência, ainda
gosta do errado, rebelando-se assim contra a lei escrita, por causa de sua
denúncia. Em outras palavras, o homem gosta do pecado, desobedece ao próprio
senso de certo e errado que ele já tem e odeia a lei que vem denunciá-lo. É
neste ponto que ele se torna responsável. Porque a revelação de Deus já o
responsabilizou. Não somente por meio da lei que o denuncia por fora, mas
também pela sua consciência interior que o denuncia por dentro. O homem se
rebela contra Deus quando olha para Sua criação e não Lhe dá glória, bem como
se rebela contra Deus quando faz o errado já sabendo, pois de fato sabe
naturalmente. Quando a lei vem e o denuncia, o homem também se rebela contra a
lei de Deus, pois deseja ficar acomodado em seus pecados.
Na transcendência, Deus já estabeleceu tudo que iria
acontecer, mas ninguém pode usar isso como resposta contra Deus, pois em Sua
imanência, Deus estabeleceu Sua vontade em termos de relação com a
criatura. Na transcendência, Deus é sozinho; na imanência, Ele Se relaciona,
mas ainda é superior. Se na imanência, o homem é inferior e portanto obrigado a
obedecer, ainda que nessa relação imanente, Deus deixe o homem desobedecer,
imagine na transcendência, que o homem não pode entrar... Na transcendência,
Deus determinou que o homem iria pecar, mas o homem não tem controle nem
opinião sobre isso. Já na imanência, Deus prescreveu ao homem qual é Sua
vontade e aqui, na imanência, o homem espontaneamente desobedece a Deus, que já
o havia designado para desobedecer em Sua transcendência. É nesse aspecto que o
homem é culpado. Pois é na imanência que a lei de Deus é revelada, Sua vontade
é declarada e, na Sua relação com a criatura, Deus (imanentemente falando),
ordena que o homem Lhe obedeça e o homem é cobrado. Os decretos de Deus em sua
transcendência não servem de desculpa para o homem que intencionalmente peca
contra a vontade de Deus em sua relação imanente. Quando você compreende estes
dois aspectos do ser de Deus, então a confusão desaparece. Repetindo, na
transcendência não há relacionamento, exceto entre as Pessoas da divindade. Mas
na imanência há relacionamento entre Deus e Suas criaturas. É nessa esfera que
se dá a responsabilidade humana. Na esfera superior (transcendência) Deus
decreta tudo; na esfera inferior (imanência) Deus revela Sua vontade para o
homem e Se relaciona com ele, podendo assim cobrar dele. Na esfera superior
existe a vontade secreta e o homem não pode entrar; na esfera inferior existe a
vontade revelada o homem é responsável diante dela. Na esfera superior, Deus já
estabeleceu o pecado; na esfera inferior, Ele responsabiliza o pecador. O homem
é ignorante da esfera superior; mas é inteiramente responsável na esfera
inferior. Isso porque, na esfera superior o homem é ignorante, mas não o é na
esfera inferior!
Esse é o ensinamento de Dt 29.29: “As coisas encobertas
pertencem ao Senhor, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a
nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”.
As coisas encobertas são da transcendência; as reveladas são da imanência. As
encobertas não nos compete; as reveladas nos responsabilizam. As encobertas são
os decretos eternos; as reveladas são nossas obrigações. As encobertas não
mudam; as reveladas mudam. Por exemplo, nas coisas encobertas, Deus já havia
decretado a salvação dos ninivitas da época de Jonas; nas reveladas, Deus disse
que os destruiria e depois Se arrependeu. Nas coisas encobertas, Deus já havia
decretado a cura de Ezequias; nas reveladas, Ele mandou dizer a Ezequias que
ele morreria daquela enfermidade, mas depois o curou e lhe concedeu mais quinze
anos de vida. Nas coisas encobertas, Deus já havia decidido perdoar Israel; nas
reveladas, Ele fez uma ameaça e depois voltou atrás pela intercessão de Moisés.
Porém, é claro que todos estes fatos já estavam decretados nas coisas
encobertas: tanto a pregação de Jonas, quanto a oração de Ezequias e a
intercessão de Moisés. Nas coisas encobertas, Deus estabeleceu que mudaria as
circunstâncias por meio dos eventos que Ele mesmo decretou que aconteceriam. Deus
decretou na transcendência que iria avisar a Jonas sobre a destruição de
Nínive, que Jonas iria fugir, que Deus iria trazê-lo de volta, que ele iria
proclamar a mensagem mesmo revoltado, que o povo iria se arrepender, que Deus
iria perdoar, que Jonas iria se revoltar mais ainda e que Deus iria lhe dar uma
lição espiritual de moral! Porém, na imanência, as coisas aconteceram de forma
relacional e Deus interagiu de acordo com as ações espontâneas, tanto de Jonas,
como dos ninivitas. Entretanto, todas as ações já estavam decretadas. As ações
de Deus na imanência, portanto, não são apenas para a condenação de eventos
pecaminosos que Ele já havia decretado, mas também para a salvação de
pecadores. Enfim, é sobre tudo o que acontece. Esta é apenas uma explicação de
como a responsabilidade humana é requerida diante deste aspecto da revelação de
Deus: Sua imanência, mesmo que todas as ações tenham sido decretadas no aspecto
de Sua transcendência.
Deus poderia, em Sua transcendência, determinar todas as
coisas, deixar o homem viver sua vida sem Se revelar a ele, sem Se relacionar
com ele e, no fim, executar aquilo que Ele determinou, isto é, condenar o
homem. Mas Deus, além de determinar todas as coisas em Sua transcendência, veio
em Sua imanência a Se relacionar com o homem, a fim não somente de executar a
condenação que Ele já tinha decretado, mas também de salvar os Seus escolhidos através
de Sua revelação e relação com eles por meio de Cristo Jesus. Embora todas
estas decisões já estivessem decretadas, Deus veio até nós, revelou-nos Sua
vontade, Seu caráter e os homens reagiram voluntariamente a essa relação e
revelação de acordo com aquilo que Ele já havia estabelecido. Dessa forma, os
homens são responsáveis dentro desta esfera de relação com Deus, a Sua
imanência, cumprindo assim o que Ele já havia decretado em Sua transcendência.
Este ensino resolve a questão de alguns. Certas pessoas
argumentam que não têm responsabilidade sobre qualquer dever, caso o fim já
esteja invariavelmente determinado. O erro desse pensamento é pressupor que
deve haver liberdade para haver responsabilidade. Para essas pessoas, em outras
palavras, as coisas só podem fazer sentido se Deus não tiver controle sobre
elas. Nesse caso, não seria isso uma guerra contra o poder de Deus? Não seria
uma rebelião minha contra a liberdade e o poder de Deus? Eu só serei
responsável, só responderei diante de Deus se Ele abrir mão do Seu controle
sobre mim e eu puder fazer o que eu quiser escolher! Esse pensamento é maligno.
É uma competição do homem contra Deus. É querer dizer a Deus que tenho controle
sobre as coisas que ocorrem na minha vida. Na Sua imanência, Deus até deixa o
homem pensar assim, embora na Sua transcendência Ele já tenha determinado até
mesmo esse pensamento! Mas o homem será responsabilizado por esse pensamento
maligno, visto que a Bíblia, a Palavra que revela a vontade de Deus para o
homem, já diz: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura,
pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim?” (Rm 9.20).
Olhando pela lente da transcendência, Ele preparou vasos de ira para a perdição
desde a eternidade. E olhando pela lente da imanência, tais vasos pecam
voluntariamente e são odiosos contra a lei revelada de Deus. Por isso são
responsáveis e responderão sim, mesmo sem poder mudar uma vírgula de tudo o que
Deus decretou na transcendência!
Para o bom observador, ele já percebeu que mesmo a imanência
divina é regulada na transcendência. Isto é, a forma de Deus Se relacionar já
foi decretada na Sua transcendência desde a eternidade. Deus decretou que na
Sua relação com o homem, Ele iria Se revelar e responsabilizar o homem por suas
ações. Portanto, o homem é responsável porque Deus assim estabeleceu, tanto na
transcendência como na imanência e nesta, Deus não o deixou sem conhecimento.
Seja na criação, na consciência, na Palavra escrita ou encarnada, Deus Se
revelou e Se relaciona com os homens, de modo que estes serão responsabilizados
e indesculpáveis!
Día tes písteos.
Pr. Cleilson